5.2.14

Comecei uma nova mania: todo dia me fotografo e no computador desenho meus traços e depois aplico este desenho numa pintura. Sinto que estou tentando me remover de mim mesmo, assim como toda noite retiro meu óculos e meu rosto verdadeiro aparece para dormir, sonhar, viver outra coisa. Ou quando retiro meu óculos e minhas roupas para tomar banho e fico verdadeiramente nu na minha única e solitária intimidade. No máximo não estou sozinho, estou comigo mesmo.

4.2.14

Bafo do Diabo

Eu acredito que consigo ver o futuro. Todos os dias são exatamente parecidos. Não sei como começa, mas sei como vai terminar. Mas não hoje. Hoje foi um dia normal no inferno. O diabo acordou, perdeu alguns minutos na sua cama king size e levantou ranzinza. Trinta minutos depois de seu despertador tocar. Trinta minutos antes do que costuma levantar. Foi até sua cozinha particular e como faz há bilhões de anos, acendeu o fogo da boca do fogão para o planeta Terra ferver. Encheu os pulmões vermelhos de enxofre e deu uma baforada no planeta.

Acordei atrasado como sempre. Hoje resolvi ignorar uma pessoa que vivia em meus pensamentos constantemente. Missão cumprida. Primeira coisa que eu leio: meu horóscopo. Áries. Signo do fogo. Está muito quente. O verbete esotérico dizia para eu reservar tempo e espaço para eu me equilibrar, adiar decisões importantes e cuidar de mim. Difícil, mas não impossível. Dois segundos depois e eu já tinha esquecido da mensagem e me preocupava com o café.

Ônibus cheio, carros entupindo a rua estreita da saída do bairro. Muita gente. Encostado no vidro. Suando. Muito suor. Não fazia nem uma hora que eu estava de pé. Desço do primeiro coletivo. Vou para o terminal. A música nos meus ouvidos não deixou eu ouvir o pedinte me pedindo dinheiro. Deixei falando sozinho. Coitado. Não teve culpa de atravessar o meu caminho. Meu caminho. Como se eu fosse dono de algum caminho.

Entro no prédio e dou graças a algum deus pelo ar condicionado. As vezes acho que é por isso que eu venho trabalhar. Por causa do ar condicionado. Mentira. É pela grana mesmo. Como todos nós. Incrível como o dinheiro nos iguala nos motivos e nos separa por ele mesmo. Aposto que o diabo soltou um risinho de onde quer que ele esteja. Num lugar melhor, suponho.

Primeira notícia do dia: um cientista bem velho e bem renomado diz que o aquecimento global é inevitável e 6 bilhões morrerão. Aposto agora que o diabo se preocupou. Ou não. O inferno deve ser infinito também. A raça humana está condenada. Como se não soubéssemos disso.

Segunda notícia do dia: a estagiária que namora está tendo um caso com o gerente de tecnologia de informação casado com uma grávida com problemas de saúde. A onda de calor turva minha visão e pensamentos e dou um riso antimoralista que ofende as duas meninas que me contaram esta fofoca.

Consigo sair na hora do rush. Dezoito horas. Tenho dentista às 20h30 perto de casa. Pelas minhas contas, chego em casa às 19h30, me refresco e vou para a sessão de tortura bucal.

Ônibus para o metrô demora mais do que o normal. Lotado. Calor. Suor. A prova de que o aquecimento global é inevitável são as gotas de suor que descem das minhas tetas e costas. I-ne-vi-tá-vel.

Chego no metrô. Muita gente. Minha experiência diz que aconteceu alguma merda. Passa um trem lotado, espero. Passa outro trem lotado, espero de novo. Passa mais um trem lotado, resolvo esperar o próximo. Passa mais um trem lotado e eu entro. As pessoas não sabem se comportar. O cara do meu lado acha que está sozinho e o braço dele fica encostando na minha cabeça. Os seios da menina ao lado estão espremidos para cima e isso tira a atenção do maldito mal educado. Firmes e lisos eles balançam suavemente a cada freada do trem. Mais gente entra e eu perco essa visão.

Terceira notícia do dia: em 2014, SP é o estado que mais deve registrar casos de câncer. 152.200 novos casos serão diagnosticados no estado. Mais de 150 mil pessoas sofrerão com a doença. Quantas pessoas estão aqui neste trem comigo? 0,2% das pessoas que estão neste vagão terão câncer neste ano. Câncer de pele, próstata, mama, cólon, reto, pulmão, estômago, útero. Façam suas apostas. O inferno tem que ser infinito. Despreocupado é o demônio. Penso nesta volta para casa, penso na ida ao dentista, penso na tomografia que vou fazer, penso no câncer de boca que vou ter.

Chego na Sé linha 2-vermelha e está abarrotada. Mais do que o normal. Normal. Como se existisse o normal. Aconteceu uma merda maior ainda. Entro no trem parado achando que ele ia começar a se movimentar logo. Nada. Dez minutos, vinte minutos. Gritaria. Retiro os fones do ouvido e ouço melhor. Uma voz informa que o trem da linha 2-vermelha vai ser evacuado. Não o meu, mas o trem do outro lado. Percebo uma multidão se movimentando, xingando, batendo nos vidros. Trocentas pessoas aglomeradas. O bafo do calor cria uma massa marrom dentro do trem vizinho. Distingo braços levantados, alguns movimentos de mãos se abanando e celulares filmando toda a situação. E eu ainda tenho que ir ao dentista. Saio do meu trem e volto a linha 1-azul e vou para Santana. Passa um trem lotado e eu aguardo o próximo. Passa outro trem lotado e eu entro. Um homem com cabelo de Elvis, camisa de cetim vermelha e sapatos brancos chama minha atenção. Chego em Santana. Sinto a baforada do diabo quando saio do trem. Mal estar. Entro no ônibus lotado e o único lugar vago é atrás de uma menina que está comendo salgadinhos de bacon. Cheiro de bacon no ar. Mal estar. Dez minutos e nada. O ônibus sai do terminal. Devo chegar em 20 minutos em casa. Travo o iPod na música "European Son" do Velvet Underground: “you better say so long, hey hey, bye bye bye”. Pego o meu livro “Black Spring”, do Miller, para ler. Estou na parte de um sonho alucinante misturado com pesadelo. A parte mais surreal do livro. E ele descreve um inverno. O mais frio de todos. E o suor desce pelas minhas dobras. E a última parte do capítulo grita comigo:

“OUT OF BLACK CHAOS WHORLS OF LIGHT WITH PORTHOLES JAMMED. OUT OF THE STATIC NULL AND VOID A CEASELESS EQUILIBRIUM. OUT OF WHALEBONE AND GUNNYSACK THIS MAD THING CALLED SLEEP RUNS LIKE AN EIGHT-DAY CLOCK.”

“FORA DO CAOS NEGRO, ESPIRAIS DE LUZ COM VIGIAS EMPERRADAS. FORA DO VAZIO ESTÁTICO E NULO, UM INCESSANTE EQUILÍBRIO. FORA DAS BARBATANAS DE BALEIA E SACOS DE ANIAGEM ESTA COISA LOUCA CHAMADA SONO FUNCIONA COMO UM RELÓGIO DE OITO DIAS.”

Duas horas e quarenta e dois minutos para chegar em casa. Para ir à tortura bucal. Duas horas e quarenta e dois minutos para o câncer na boca. A doutora não quis me esperar. Perco a consulta. Adio a tortura. Adio o câncer.

Quarta notícia do dia: Após falha, metrô de São Paulo tem quebra-quebra, tumulto e desmaios. Usuários da linha 3-vermelha acionaram botão de pânico e andaram pelos trilhos. Estações são fechadas.

E mais um dia, o bafo do diabo deu a volta ao mundo.

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