Dentro do vagão eu encaro aqueles olhos fatigados pelo dia, pelas horas de espera num hospital. Aqueles olhos que só pensam em descanso. Donos de braços magros e fortes que seguram um recém nascido embrulhado em cobertores para proteger do frio que faz na cidade. Enfim o inverno chegou. Enfim enxergo tudo cinza. Sinto um peso na minha cabeça e não são os fones de ouvido em forma de arco. O peso vem mais do centro. Da minha protuberância nasal. Sinto as impurezas do meu corpo querendo sair.
Dentro do ônibus eu sacolejo em câmera lenta. Minha cabeça com seu próprio peso central vai ficando cada vez mais difícil de sustentar. As luzes florescentes se apagam e o vermelho e o laranja da cidade invadem o ônibus. A freada surpresa faz minha cabeça ir para frente enquanto eu barro meu corpo segurando no banco da frente. Meu nariz cresce um pouco mais e sinto ele pulsar agora.
Descendo a rua molhada cheia de poças tenho a impressão de que estou sozinho no bairro mesmo com o comércio ainda aberto. Não sinto cheiro de nada, meu olfato desapareceu. A rua está com uma iluminação mesclada pelo laranja das luzes públicas com o preto da noite sombria. Faz vento e um toldo me protege. Tem o formato de mãos acolhedoras com patas de aranha no lugar de dedos. Olho para cima e só vejo patas querendo me cobrir. Meu nariz vermelho e duro e minha fome me arrastam para casa.
Sinto uma força tão poderosa que toma conta do meu corpo que não consigo expulsa-la no banho. Na verdade nem entro no chuveiro. Fico apenas de cueca e coloco as roupas velhas que tanto já se acostumaram com o cheiro da rua e se folgam no meu corpo cansado e gordo. Uma tosse seca sai dos meus pulmões e sinto um gosto de ferro na minha boca enquanto volto a engolir o catarro com sangue.
Na cozinha, abro uma panela com o resto de ontem que estava em cima do fogão. Arroz com frango desfiado. Sinto vontade de comer ovos. Pego uma panela menor e acendo o fogo. Abro a geladeira e não tenho ovos. “Merda, merda, merda, MEEERRRDAA!”, ouço a vizinha gritar do lado de fora. “Você se cagou toda nessa hora da noite, caralho! Como vou te dar banho nessa hora, porra!”, ela grita para a mãe idosa e doente que se cagou toda na casa vizinha. “Fica quieta, não se mexe! Tá espalhando tudo, olha só”, mais gritos. Fecho os olhos de raiva. Abro uma garrafa de vinho e bebo o resto que tinha. Não tenho ovos e a vizinha velha está toda cagada com uma filha nervosa que só grita sobre merda.
Passo a mão no rosto e levo junto meu nariz. Arranco a bolota vermelha e inchada da minha cara. O que faz com que meus óculos caiam no chão e se quebram em diversos pedaços. Bato o nariz na borda da panelinha e ele racha, fazendo uma gema sebácea e mucosa cair e estatelar no ferro quente. Quando começo a mexer a gororoba vejo uma pequena larva verde se contorcer junto à gosma. Minha impureza morre naquela panela fervendo. Eu volto a envenenar meu corpo e mente quando devoro aquela comida sem cheiro.
Todos os dias massacramos nossos instintos básicos.
Só o empirismo e a necessidade salvam! Adaptação. Sempre.
10.7.14
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