12.8.19

Chlamydia trachomatis

Um calor invadiu seu corpo. Sentiu vindo de baixo. Foi subindo e encontrou o frio do seu esofago - sua ansiedade. Suas entranhas ficaram com fome. Sentiu o vazio e o cheio por completo ao mesmo tempo. Suas pernas amoleceram e ele suspirou alto. Arrepio das costas à nuca. Revirou os olhos até se tornarem brancos por completo e uma luz forte invadiu sua vista. Seu olho doeu por um instante. Tudo agora parecia mais claro. Ele ainda era iluminado pelas luzes artificiais do ambiente grande de trabalho. Mas tudo parecia mais claro, mais insuportável. O clarão branco que saia do seu notebook atrapalhava sua visão e lhe dava tontura. Olhou ofuscado pelo brilho do ambiente. Percebeu uma mistura de luzes acima de sua cabeça. Contou as lâmpadas. Dezesseis. Quatro amarelas e o restante brancas de LED. Lembrava hospital. O ambiente lembrava uma fábrica de roupas clandestina do Bom Retiro. Com bolivianos. Sem janelas de verdade. Sem saída de emergência. Estava tonto pelas luzes. E ansioso pela situação que não entendia. Sua perna esquerda agitada e inquieta num movimento incessante. Tentou se levantar, mas teve que apoiar à mesa para não cair. "Não foi pra isso que eu vim", pensou. "Eu tenho que sair deste lugar ou vou enlouquecer".
Todos continuavam a trabalhar normalmente. Somente ele sentia-se incomodado pela luz. Seu olho esquerdo começou a coçar loucamente. Derrubou seus óculos de grau e foi cambaleando para o banheiro masculino. O cheiro de lavanda com fezes infestam o local abafado e também sem janelas. A luz acendeu com seu movimento. Apoiou na pia, abriu a torneira, juntou a água com as mãos e lavou o rosto. Seu olho esquerdo ardia e coçava. Um colega saiu do cubículo e deixou o banheiro sem lavar as mãos. Imaginou toda a jornada das mãos do colega até ele chegar em casa. Ele ia tossir e cobrir a boca com elas. Ia usar a tela do celular com aqueles dedos não lavados. Ia apertar a mão do visitante antes da reunião. Ia segurar no corrimão do ônibus com as mãos não lavadas. Ia abrir a maçaneta da porta de casa. Ia afagar o pescoço da esposa com as mãos sujas. Não sujas visivelmente, mas sujas o suficiente nas profundezas. Ia fazer um cafuné na cabeça do filho e na cabeça do cachorro, que depois lambiria tudo. Até tomar banho e se lavar. Mas daí o estrago já estava feito. Estavam todos contaminados. Pensou se não foi o colega que o deixou assim, mas não. Ele sentava longe e não se cumprimentavam. Estava menos abalado pelas luzes, menos tonto, mas com a coceira no olho esquerdo. Encarou o espelho, abriu as pálpebras com os dedos e o branco do olho estava vermelho. As veias tentavam furiosamente chegar à íris esverdeada. Imaginou o que seria. Conjuntivite? Dois amigos estava assim na semana passada. Achou possível. Mas não explicava o clarão repentino. Nem a tontura. Lavou novamente o rosto, enxugou com aquele papel vagabundo que não seca nada e voltou ao seu lugar. A tela ainda ardia sua visão.
Pegou suas coisas e resolveu ir embora. "Não estou bem, trabalho de casa", digitou para sua chefe. A rua estava quente e abafada e sol mais claro que o normal. "Será se fico cego como no livro do Saramago?" pensou rindo de nervoso. Foi devagar até o ponto de ônibus. Coçava o olho esquerdo com força. "Quando vier o 7600 me avisa por favor?" pediu para uma senhora. "Claro, é o mesmo que o meu", ela respondeu. "Obrigado". Algum tempo depois o ônibus chegou e ele entrou. Lembrou dos corrimãos cheio de germes de mais das milhares de pessoas que não lavam a mão ao sair do banheiro e tentou não segurar em nada. Achou um assento vazio e seguiu a viagem sem deixar de coçar o olho esquerdo. E coçava e coçava. Olhou para sua mão que já estava com pequenas manchas de sangue. Assustado, tirou o celular do bolso, ligou a câmera frontal e fingindo um selfie, viu no reflexo o vermelhidão do seu olho esquerdo. Um pequeno borrão vermelho de sangue rasgava seu olho como uma maquiagem destruída pelas lágrimas e secada pelo vento. Sacou um Kleenex da mochila e pressionou no olho esquerdo. Ainda coçava muito, mas não queria piorar a situação. Da visão do seu olho direito vinha apenas o clarão. O dia mais claro que já viu. Reservados, nenhum passageiro o encarava. Seu Kleenex começa a encharcar. Desceu e acelerou o passo indo para casa. "Boa tard..." Nem respondeu de volta ao porteiro e abriu a porta do elevador rapidamente. Encarou o espelho. Com muito do que veria retirou o Kleenex do olho esquerdo. O horror. Seu olho esquerdo parecia um ovo quebrado. Mas sem as cascas. Tudo misturado. Gema e clara em íris e esclera. O vermelho sangue com o amarelo. As veias vulcânicas pulsando. Sentia o olho esquerdo quente. Fechou o direito e abriu as pálpebras do esquerdo. Estava tudo vermelho. Sua pressão começou a baixar assim que o elevador parou em seu andar. Tremendo, abriu a porta, fechou a porta com um estrondo e logo sentou-se no sofá. Seu gato chegou de mansinho. Não se assustou com o barulho da porta. Subiu em seu colo de um só pulo e o encarou. Seus olhos brilhavam intensamente. Mais bonitos que de costume. O gato encarava somente o olho esquerdo. O globo avermelhado. O ovo estourado. O pulsante vermelhidão. O núcleo de fogo. O Deus Sol. O gato lhe apalpou a perna esquerda agitada e inquieta e ele parou. Ficou imóvel, estupefato mirando o gato. O gato. Sua companhia solitária. Olhou para ele misteriosamente, abriu a boca revelando seus dentes afiados e disse com uma voz calma, grossa e reconfortante:

"Para os outros, o universo parece honesto. Parece honesto para as pessoas de bem porque elas têm os olhos castrados. É por isso que temem a obscenidade. Não sentem nenhuma angústia ao ouvir o canto do galo ou ao descobrirem o céu estrelado. Em geral, apreciam os "prazeres da carne" na condição de que sejam insossos.

Mas, desde então, não havia mais dúvidas: eu não gostava daquilo a que se chama "os prazeres da carne" justamente por serem insossos. Gostava de tudo o que era tido por "sujo". Não ficava satisfeito, muito pelo contrário, com a devassidão habitual, porque ela só contamina a devassidão e, afinal de contas, deixa intacta uma essência elevada e perfeitamente pura. A devassidão que eu conheço não suja apenas o meu corpo e os meus pensamentos, mas tudo o que imagino em sua presença e, sobretudo, o universo inteiro."


O gato pulou para fora do seu colo, pousou no chão elegantemente, ergueu o rabo e entrou na cozinha. Ele abriu lentamente os olhos e tudo estava em preto e branco. Olhou para a janela à sua esquerda e enxergou luzinhas amarelas. "Ufa, só está de noite", pensou aliviado e veio uma frase qualquer em sua mente: "a noite é o dia em preto e branco". Riu, levou a mão para o olho esquerdo e ele estava seco. Foi ao banheiro, acendeu a luz, encarou o espelho e seu olho esquerdo estava normal. Normal. Assim como o olho direito. Abriu as pálpebras dos dois olhos ao mesmo tempo e nenhum vermelhidão. Nenhuma coceira. Somente os borrões de sangue. A vista estava cansada. Pesada. Deitou a cabeça em seu travesseiro. Encontrou-se relaxado. E agora que ele encontrou, sumiu. Agora que ele sente, não sente mais.



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