Só o empirismo e a necessidade salvam! Adaptação. Sempre.
5.9.12
Intenções de oração
A entrada para o metrô estava lotada de gente. Por isso saí do terminal para dar a volta ao redor do shopping. A rua Domingos de Morais na altura do Santa Cruz ganha uma forte saturação laranja à noite, mas foi uma torre cinza e bem iluminada estilo gótica contrastando com o céu escuro e sem estrelas que me chamou a atenção. Estava a alguns passos de distância, então decidi ir até lá e fotografar a igreja, mas não consegui devido a forte iluminação que vinha dos holofotes mal colocados. A visão era bonita. A igreja ganhava uma coloração cinza tão poderosa quanto uma fotografia PB. Quando pequeno nunca gostei de igrejas, mas depois que me fundamentei ateu comecei a apreciar o local sagrado de diversos símbolos. Depois de ter estudado história da arte, comecei a prestar bem mais atenção, entrar e reparar nos detalhes arquitetônicos, obras de arte e silêncios que merecem respeito. E foi a primeira coisa que me surpreendeu na paróquia. Tinha me esquecido de como é tão quieto lá dentro. Chega a quase dar uma sensação de paz. Passei pelas laterais, sempre com a câmera na mão, observando as esculturas que decoram o local, o altar suntuoso, o teto enorme e o padrão que desenhava ele. Branco com quadrados azuis e detalhes vermelhos e dourados. Algumas pessoas sentadas aleatoriamente nem preenchiam o local. Ouvi uma tosse. Ao me aproximar do altar escutei uma batida na madeira que ecoou e tirou a concentração dos fiéis. Uma mulher sentada no primeiro banco escrevia ferozmente num pedaço de papel e resmungava algo com voz de choro. Sentei uma fileira atrás da moça que reclamava com Deus sem parar. "Você não vai fazer imundície comigo!", ela esbravejava ignorando a presença de todos. Apontava o indicador para as principais imagens do altar, que a encaravam com seus olhares de piedade. Também ignoravam a presença dela. Algumas carolas pediram para ela respeitar o local e a mulher gritou mandando as senhoras cuidarem de suas vidas. Perguntou para o casal de japoneses idosos ao lado o que eles estavam olhando. Nunca tinha presenciado uma "discussão" com Deus. Ela repetia para ele não trair e não ser imundo com ele. “Seja fiel comigo!”. Cobrava dívidas, promessas e agitava os braços gordos e depois batia com força na madeira. Me perguntei o que ela queria dele, o que esperava dele e imaginei que Deus também tinha essas duvidas. Ela realmente parecia brava com ele e exigia explicações. Resolvi filmar esse momento absurdo, já que só vivendo absurdamente é possível acabar de vez com o absurdo infinito. Ela levantou, depositou os papéis numa urna com os dizeres "intenções de oração" escritos, fez uma reverência para o altar e voltou para seu assento. De relance vi o rosto vermelho e emocionado dela. A essa hora já tinha parado de gravar tudo. Sentada, ela ajeitou o casaco na guarda do banco, se ajoelhou e vestiu uma fita vermelha de cetim. Percebi que a missa ia começar e fui embora.
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