19.9.12

Um dia no Moinho

Eu não sei o motivo porque traí ele. Não existe motivo. Mas foi isso que fez ele atear fogo no meu corpo. Não que eu tivesse merecido, podíamos ter xingado um ao outro ou nos agredido como todo mundo faz. Mas não. Como sempre ele só pensou nele mesmo. Que ideia imbecil de mexer com fogo dentro de um barraco de madeira! Dentro de uma favela! Eu mal levantei assustado e gritando de dor e cai no chão ao me jogar em cima dele. Comecei a rolar no chão inutilmente só para o fogo subir as paredes e chegar ao teto. Quadrado do inferno. As chamas chegaram nos vizinhos ao lado e pude ouvir mais gritos de desespero se juntando aos meus. Foi bem rápido e logo amanheceu.

17.9.12

Visões dos dias que passaram

Tão vazio que às vezes me pego pensando em passageiros do metrô que eu vi apenas uma vez.
Acontece com mais alguém?

5.9.12

Intenções de oração

A entrada para o metrô estava lotada de gente. Por isso saí do terminal para dar a volta ao redor do shopping. A rua Domingos de Morais na altura do Santa Cruz ganha uma forte saturação laranja à noite, mas foi uma torre cinza e bem iluminada estilo gótica contrastando com o céu escuro e sem estrelas que me chamou a atenção. Estava a alguns passos de distância, então decidi ir até lá e fotografar a igreja, mas não consegui devido a forte iluminação que vinha dos holofotes mal colocados. A visão era bonita. A igreja ganhava uma coloração cinza tão poderosa quanto uma fotografia PB. Quando pequeno nunca gostei de igrejas, mas depois que me fundamentei ateu comecei a apreciar o local sagrado de diversos símbolos. Depois de ter estudado história da arte, comecei a prestar bem mais atenção, entrar e reparar nos detalhes arquitetônicos, obras de arte e silêncios que merecem respeito. E foi a primeira coisa que me surpreendeu na paróquia. Tinha me esquecido de como é tão quieto lá dentro. Chega a quase dar uma sensação de paz. Passei pelas laterais, sempre com a câmera na mão, observando as esculturas que decoram o local, o altar suntuoso, o teto enorme e o padrão que desenhava ele. Branco com quadrados azuis e detalhes vermelhos e dourados. Algumas pessoas sentadas aleatoriamente nem preenchiam o local. Ouvi uma tosse. Ao me aproximar do altar escutei uma batida na madeira que ecoou e tirou a concentração dos fiéis. Uma mulher sentada no primeiro banco escrevia ferozmente num pedaço de papel e resmungava algo com voz de choro. Sentei uma fileira atrás da moça que reclamava com Deus sem parar. "Você não vai fazer imundície comigo!", ela esbravejava ignorando a presença de todos. Apontava o indicador para as principais imagens do altar, que a encaravam com seus olhares de piedade. Também ignoravam a presença dela. Algumas carolas pediram para ela respeitar o local e a mulher gritou mandando as senhoras cuidarem de suas vidas. Perguntou para o casal de japoneses idosos ao lado o que eles estavam olhando. Nunca tinha presenciado uma "discussão" com Deus. Ela repetia para ele não trair e não ser imundo com ele. “Seja fiel comigo!”. Cobrava dívidas, promessas e agitava os braços gordos e depois batia com força na madeira. Me perguntei o que ela queria dele, o que esperava dele e imaginei que Deus também tinha essas duvidas. Ela realmente parecia brava com ele e exigia explicações. Resolvi filmar esse momento absurdo, já que só vivendo absurdamente é possível acabar de vez com o absurdo infinito. Ela levantou, depositou os papéis numa urna com os dizeres "intenções de oração" escritos, fez uma reverência para o altar e voltou para seu assento. De relance vi o rosto vermelho e emocionado dela. A essa hora já tinha parado de gravar tudo. Sentada, ela ajeitou o casaco na guarda do banco, se ajoelhou e vestiu uma fita vermelha de cetim. Percebi que a missa ia começar e fui embora.

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