Anteriormente em Season Finale...
No ano retrasado me desencontrei. No ano passado fiquei comigo. E neste ano...
E no espelho encontrei algo que não esperava encontrar... Encontrei eu mesmo. Assustado, estarrecido, cansado. Não conseguia desviar do meu próprio olhar. Posso me ouvir preso atrás do espelho. Um doppelganger respirando pesadamente em fúria. Se fizer silêncio consegue ouvir o monstro respirar.
No começo fui levado ao encanto do olhar monstruoso. Queria ir de encontro a ele e deixar ser dominado. Tive noites extremas num mar de bebidas. Noites acordadas entre bares – tentar esquecer a pressão dos dias. Mas o monstro não queria dominar. Ele queria coexistir. Ele quer. Por que tudo é tão nebuloso?
Reinamos juntos neste ano. Como um Rei de Copas: emocionalmente endurecido, dores privadas, emocionalmente indisponível, perdido no amor (dos outros e no próprio), emocionalmente arrogante, excessivamente emocional.
Este Rei pode ter seus sentimentos tão difíceis que ele os esconde. Até dele mesmo. Melódico, é um antagonista. Uma paranoia sussurrando para mim; uma voz atrás da minha cabeça me dizendo que as coisas não vão funcionar, fazendo decisões dolorosas e egoístas. E eu somente encarava do outro lado do espelho. Sou o diretor observando o ensaio.
E a Roda da Fortuna e seus pentáculos nos lembra que mudanças são inevitáveis. Não importa como as coisas são agora, elas não vão ficar assim para sempre. Mais do que nunca, preciso me adaptar.
Não temos sempre o controle sobre o que a vida coloca no nosso caminho, mas podemos decidir como nós respondemos a isso. Precisamos ser flexíveis e adaptarmos, irmos com a correnteza. Seja ela o acaso ou o destino.
Como um malabarista, na vida precisamos as vezes manter mais de uma bola no ar. Nada parece certo e ficamos incapazes de imaginar melhores possibilidades para nosso futuro. A vida é muito estranha...
E cansamos de tudo e nos deitamos neste campo vazio para não fazer nada e esperar quando tudo for maravilhoso – festejar numa parada – uma bela desculpa para celebrar a bagunça que fizemos.
E eu posso sentir a diferença quando o dia começa, “este vai ser o ano em que venceremos” e começamos novamente, antes das lembranças das bagunças que fizemos.
Memórias se apagam e histórias podem mudar, mas são reais se vistas em fotografias. Vendo somente o que eu sinto. E parando o tempo das pessoas que não conheço. Deixando elas em preto e branco. Tristes, felizes, cansadas, sonhadoras, alegres. Se tivesse um som seria a batida de uma bateria. Meu coração é uma bateria, marcando o tempo com todo mundo.
Descobri que os desejos são fantasmas do passado. Desejos que precisam de muito para sobreviverem. Mas os meus morreram. E outros vão nascer.
Nascer nesta que é a minha arte de cair constantemente. E levantar (ou tentar pelo menos). E ficar quieto. E observar. Bom dia, boa tarde e boa noite do meu lado mais analógico (monstruoso). As coisas menos importantes são mais fáceis de serem ditas. Fácil como veio, fácil como foi. Ocasionando entre o orgânico e o mecânico, entre o ligado e o desligado, entre os parasitas e os acolhedores, ocasionando entre os rostos que nos importamos, entre danças inacabadas. E se elas não tem fim, torcemos para que tudo isso termine logo, pois pensar em algo diferente que eu não sei o que é, é cansativo. Se você acha que está indo bem, como pode ter tanta certeza? Não é difícil, apenas frágil. Em sua própria maneira estranha. Nunca sei da minha própria força - apenas carregado pelas pessoas ao meu redor. Não sei de onde vem, só sei que por um minuto me perdi. Misturo texturas, batidas, passado, presente e deixo o futuro incerto.
Sou banhado por uma luz azul. Uma penumbra índigo em cima de um palco. E os espectadores querem ouvir apenas uma única palavra. As vezes tudo que precisamos falar pode ser dito com apenas uma palavra. Ou as vezes precisamos de muita música. Retrogrado, lágrima, esquecer? Pontes, café, tremor, lembrança, prelúdio? E amanha você pode cantar no paraíso. Numa primavera sem flores, num outono sem folhas, num inverno sem chuvas, num verão sem o sol. E são adaptações. Fico surpreso em como o fogo transforma a nicotina em fumaça para que seja preenchida nos meus pulmões o que depois vai virar um câncer. E no final, não importa se você se queimar ou desaparecer. O importante é se transformar em algo. E eu preciso me transformar em algo que eu preciso.
Mas tudo está oculto nas razões. Mesmo se permanecer em silêncio é preciso ouvir a última chamada, mesmo que seja um grito ou um sussurro. Eu mesmo vou dizer, mesmo com medo de que tudo já tenha sido feito ou dito. Pois tudo que é externo não é nada mais do que um reflexo projetado pela máquina mental.
Só preciso do vento para soprar, do fogo para queimar, da água para lavar e da terra para assentar; com isso posso desaparecer por completo. Me sinto preparado.
Continua...
Só o empirismo e a necessidade salvam! Adaptação. Sempre.
31.12.14
10.7.14
A larva no ovo
Dentro do vagão eu encaro aqueles olhos fatigados pelo dia, pelas horas de espera num hospital. Aqueles olhos que só pensam em descanso. Donos de braços magros e fortes que seguram um recém nascido embrulhado em cobertores para proteger do frio que faz na cidade. Enfim o inverno chegou. Enfim enxergo tudo cinza. Sinto um peso na minha cabeça e não são os fones de ouvido em forma de arco. O peso vem mais do centro. Da minha protuberância nasal. Sinto as impurezas do meu corpo querendo sair.
Dentro do ônibus eu sacolejo em câmera lenta. Minha cabeça com seu próprio peso central vai ficando cada vez mais difícil de sustentar. As luzes florescentes se apagam e o vermelho e o laranja da cidade invadem o ônibus. A freada surpresa faz minha cabeça ir para frente enquanto eu barro meu corpo segurando no banco da frente. Meu nariz cresce um pouco mais e sinto ele pulsar agora.
Descendo a rua molhada cheia de poças tenho a impressão de que estou sozinho no bairro mesmo com o comércio ainda aberto. Não sinto cheiro de nada, meu olfato desapareceu. A rua está com uma iluminação mesclada pelo laranja das luzes públicas com o preto da noite sombria. Faz vento e um toldo me protege. Tem o formato de mãos acolhedoras com patas de aranha no lugar de dedos. Olho para cima e só vejo patas querendo me cobrir. Meu nariz vermelho e duro e minha fome me arrastam para casa.
Sinto uma força tão poderosa que toma conta do meu corpo que não consigo expulsa-la no banho. Na verdade nem entro no chuveiro. Fico apenas de cueca e coloco as roupas velhas que tanto já se acostumaram com o cheiro da rua e se folgam no meu corpo cansado e gordo. Uma tosse seca sai dos meus pulmões e sinto um gosto de ferro na minha boca enquanto volto a engolir o catarro com sangue.
Na cozinha, abro uma panela com o resto de ontem que estava em cima do fogão. Arroz com frango desfiado. Sinto vontade de comer ovos. Pego uma panela menor e acendo o fogo. Abro a geladeira e não tenho ovos. “Merda, merda, merda, MEEERRRDAA!”, ouço a vizinha gritar do lado de fora. “Você se cagou toda nessa hora da noite, caralho! Como vou te dar banho nessa hora, porra!”, ela grita para a mãe idosa e doente que se cagou toda na casa vizinha. “Fica quieta, não se mexe! Tá espalhando tudo, olha só”, mais gritos. Fecho os olhos de raiva. Abro uma garrafa de vinho e bebo o resto que tinha. Não tenho ovos e a vizinha velha está toda cagada com uma filha nervosa que só grita sobre merda.
Passo a mão no rosto e levo junto meu nariz. Arranco a bolota vermelha e inchada da minha cara. O que faz com que meus óculos caiam no chão e se quebram em diversos pedaços. Bato o nariz na borda da panelinha e ele racha, fazendo uma gema sebácea e mucosa cair e estatelar no ferro quente. Quando começo a mexer a gororoba vejo uma pequena larva verde se contorcer junto à gosma. Minha impureza morre naquela panela fervendo. Eu volto a envenenar meu corpo e mente quando devoro aquela comida sem cheiro.
Todos os dias massacramos nossos instintos básicos.
Dentro do ônibus eu sacolejo em câmera lenta. Minha cabeça com seu próprio peso central vai ficando cada vez mais difícil de sustentar. As luzes florescentes se apagam e o vermelho e o laranja da cidade invadem o ônibus. A freada surpresa faz minha cabeça ir para frente enquanto eu barro meu corpo segurando no banco da frente. Meu nariz cresce um pouco mais e sinto ele pulsar agora.
Descendo a rua molhada cheia de poças tenho a impressão de que estou sozinho no bairro mesmo com o comércio ainda aberto. Não sinto cheiro de nada, meu olfato desapareceu. A rua está com uma iluminação mesclada pelo laranja das luzes públicas com o preto da noite sombria. Faz vento e um toldo me protege. Tem o formato de mãos acolhedoras com patas de aranha no lugar de dedos. Olho para cima e só vejo patas querendo me cobrir. Meu nariz vermelho e duro e minha fome me arrastam para casa.
Sinto uma força tão poderosa que toma conta do meu corpo que não consigo expulsa-la no banho. Na verdade nem entro no chuveiro. Fico apenas de cueca e coloco as roupas velhas que tanto já se acostumaram com o cheiro da rua e se folgam no meu corpo cansado e gordo. Uma tosse seca sai dos meus pulmões e sinto um gosto de ferro na minha boca enquanto volto a engolir o catarro com sangue.
Na cozinha, abro uma panela com o resto de ontem que estava em cima do fogão. Arroz com frango desfiado. Sinto vontade de comer ovos. Pego uma panela menor e acendo o fogo. Abro a geladeira e não tenho ovos. “Merda, merda, merda, MEEERRRDAA!”, ouço a vizinha gritar do lado de fora. “Você se cagou toda nessa hora da noite, caralho! Como vou te dar banho nessa hora, porra!”, ela grita para a mãe idosa e doente que se cagou toda na casa vizinha. “Fica quieta, não se mexe! Tá espalhando tudo, olha só”, mais gritos. Fecho os olhos de raiva. Abro uma garrafa de vinho e bebo o resto que tinha. Não tenho ovos e a vizinha velha está toda cagada com uma filha nervosa que só grita sobre merda.
Passo a mão no rosto e levo junto meu nariz. Arranco a bolota vermelha e inchada da minha cara. O que faz com que meus óculos caiam no chão e se quebram em diversos pedaços. Bato o nariz na borda da panelinha e ele racha, fazendo uma gema sebácea e mucosa cair e estatelar no ferro quente. Quando começo a mexer a gororoba vejo uma pequena larva verde se contorcer junto à gosma. Minha impureza morre naquela panela fervendo. Eu volto a envenenar meu corpo e mente quando devoro aquela comida sem cheiro.
Todos os dias massacramos nossos instintos básicos.
21.6.14
17.6.14
Ouroboros
Não estou magoado com você. Nós estávamos juntos. Eu esqueci todo o resto.
Estou magoado comigo mesmo. Pensei que ia ser fácil. Pensei que poderia acreditar em algo que não acreditava fazia anos. Acreditar em expectativas. Mas isso só resulta numa coisa. Estou magoado comigo mesmo porque achei que era recíproco. Não estou dizendo que você mentiu quando disse que gostava de mim. Você pode até ter gostado. Mas não existe reciprocidade sentimental para mim. Eu nunca vou gostar de mim mesmo. Sempre fui e sempre vou ser egoísta, só enxergava em você a minha rejeição e condição de rejeitado. Entre eu e os outros há um abismo. Um abismo sentimental. E é nesse paradoxo que sobrevivo. Até eu me juntar aos outros no fim do abismo. Eu preciso me transformar em algo que eu precise. Como se chama uma metamorfose quando você se transforma em você mesmo?
10.6.14
Dada
I had a busy morning in the office. There was a pile of bills of lading waiting on my desk and I had to go through them all. Suddenly, at the end of a corridor leading at right angles from this one, he caught sight of a figure as it lunged into view, a man. The man saw him. Reminds me of an old friend of mine, one of the handsomest men I have ever know and one of the maddest and absolutely ruined by wealth. I began to review the evolution of this love. Evolution? There had been no evolution. It had been instantaneous. Why, and I was amazed to think that I should adduce this proof, why, even the fact my first gesture had been one of rejection was proof of the fact that I recognize the attraction. Don't you mean that the other way around? You're a bit confused.
28.4.14
Germes dos outros
Olho para o lado
e te vejo cansado
pensando
pensado
boceja
mão na boca
protege o bafo
esquenta a mão
mão na alça do banco
mão na outra mão que segurou ali
germes dos outros na mão quente
pensado
cansado
boceja
mão na boca
bafo na mão
germes na mão
germes na boca
germes dos outros na boca
mão no banco
banco de germes
boceja, mão na boca
germes dos outros na boca
tosse
baforada de germes no ar
germes dos outros no ar
respira
respira os germes dos outros
germes dos outros no pulmão.
e te vejo cansado
pensando
pensado
boceja
mão na boca
protege o bafo
esquenta a mão
mão na alça do banco
mão na outra mão que segurou ali
germes dos outros na mão quente
pensado
cansado
boceja
mão na boca
bafo na mão
germes na mão
germes na boca
germes dos outros na boca
mão no banco
banco de germes
boceja, mão na boca
germes dos outros na boca
tosse
baforada de germes no ar
germes dos outros no ar
respira
respira os germes dos outros
germes dos outros no pulmão.
20.3.14
De volta à caverna
Eu sou meu próprio antepassado. Eu sou meu próprio ancestral. Nas paredes pouco iluminadas revejo desenhos primitivos que eu mesmo fiz há milhões de anos atrás. Identifico minha própria caligrafia garranchosa. Releio as frases que deixei para trás. Nada mudou. Poderia ter escrito essas profecias hoje pela manhã que elas iriam se concretizar numa próxima leitura. Da forma que eu não mudo, profetizo dias presentes. Posso prever o meu futuro se acaso eu não mudar. E é o que vem acontecendo: escrevo sobre hoje para ler no hoje de amanhã.
8.3.14
Quaresma II
Hoje fiz uma fotografia interessante e pensei que a partir dela poderia se iniciar uma nova série. Daí me perguntei por que eu crio séries? Para dar continuidade às coisas que crio? No caso da “Underground Stars” e “São Paulo Anônima” foi algo espontâneo, um conjunto de fotografias com um mesmo tema que precisavam ou não de um título. Como os temas foram se repetindo, surgiu uma série. Mas voltando a minha infância, eu sempre criei séries. Eu tinha um grupo de super-heróis, uma história em quadrinhos que comecei em 1999 e desenhei até 2005. E teve um encerramento... Crio séries para ter o controle de encerra-las? Acho que faz sentido. Até quando eu parei de brincar com bonequinhos de heróis, eu dei um final digno de cinema! Algo como se a última brincadeira teria que ser espetacular e memorável...
Hoje tenho outros tipos de séries. Tenho meus “shuffles”, uma série de mixtapes, trilhas sonoras de filmes que só existiram na minha mente. Tenho também as séries de fotografias de desconhecidos que sempre chamam minha atençãoo pelo olhar. E tenho a série da minha vida. Tenho o controle dela e posso encerrar a qualquer momento.
Não acredito que a vida seja sagrada. Acredito que foi tudo um grande acidente. Mas o mistério mais incrível de todos é a consciência, o pensamento! É muito errado – a palavra não é “errado” – não sei! Acredito que pensar deixou tudo pior. A consciência é horrível.
Mas estes são só pensamentos sem fim para se perderem na minha caverna escura. Assim como eu.
Hoje tenho outros tipos de séries. Tenho meus “shuffles”, uma série de mixtapes, trilhas sonoras de filmes que só existiram na minha mente. Tenho também as séries de fotografias de desconhecidos que sempre chamam minha atençãoo pelo olhar. E tenho a série da minha vida. Tenho o controle dela e posso encerrar a qualquer momento.
Não acredito que a vida seja sagrada. Acredito que foi tudo um grande acidente. Mas o mistério mais incrível de todos é a consciência, o pensamento! É muito errado – a palavra não é “errado” – não sei! Acredito que pensar deixou tudo pior. A consciência é horrível.
Mas estes são só pensamentos sem fim para se perderem na minha caverna escura. Assim como eu.
5.2.14
Comecei uma nova mania: todo dia me fotografo e no computador desenho meus traços e depois aplico este desenho numa pintura. Sinto que estou tentando me remover de mim mesmo, assim como toda noite retiro meu óculos e meu rosto verdadeiro aparece para dormir, sonhar, viver outra coisa. Ou quando retiro meu óculos e minhas roupas para tomar banho e fico verdadeiramente nu na minha única e solitária intimidade. No máximo não estou sozinho, estou comigo mesmo.
4.2.14
Bafo do Diabo
Eu acredito que consigo ver o futuro. Todos os dias são exatamente parecidos. Não sei como começa, mas sei como vai terminar. Mas não hoje. Hoje foi um dia normal no inferno. O diabo acordou, perdeu alguns minutos na sua cama king size e levantou ranzinza. Trinta minutos depois de seu despertador tocar. Trinta minutos antes do que costuma levantar. Foi até sua cozinha particular e como faz há bilhões de anos, acendeu o fogo da boca do fogão para o planeta Terra ferver. Encheu os pulmões vermelhos de enxofre e deu uma baforada no planeta.
Acordei atrasado como sempre. Hoje resolvi ignorar uma pessoa que vivia em meus pensamentos constantemente. Missão cumprida. Primeira coisa que eu leio: meu horóscopo. Áries. Signo do fogo. Está muito quente. O verbete esotérico dizia para eu reservar tempo e espaço para eu me equilibrar, adiar decisões importantes e cuidar de mim. Difícil, mas não impossível. Dois segundos depois e eu já tinha esquecido da mensagem e me preocupava com o café.
Ônibus cheio, carros entupindo a rua estreita da saída do bairro. Muita gente. Encostado no vidro. Suando. Muito suor. Não fazia nem uma hora que eu estava de pé. Desço do primeiro coletivo. Vou para o terminal. A música nos meus ouvidos não deixou eu ouvir o pedinte me pedindo dinheiro. Deixei falando sozinho. Coitado. Não teve culpa de atravessar o meu caminho. Meu caminho. Como se eu fosse dono de algum caminho.
Entro no prédio e dou graças a algum deus pelo ar condicionado. As vezes acho que é por isso que eu venho trabalhar. Por causa do ar condicionado. Mentira. É pela grana mesmo. Como todos nós. Incrível como o dinheiro nos iguala nos motivos e nos separa por ele mesmo. Aposto que o diabo soltou um risinho de onde quer que ele esteja. Num lugar melhor, suponho.
Primeira notícia do dia: um cientista bem velho e bem renomado diz que o aquecimento global é inevitável e 6 bilhões morrerão. Aposto agora que o diabo se preocupou. Ou não. O inferno deve ser infinito também. A raça humana está condenada. Como se não soubéssemos disso.
Segunda notícia do dia: a estagiária que namora está tendo um caso com o gerente de tecnologia de informação casado com uma grávida com problemas de saúde. A onda de calor turva minha visão e pensamentos e dou um riso antimoralista que ofende as duas meninas que me contaram esta fofoca.
Consigo sair na hora do rush. Dezoito horas. Tenho dentista às 20h30 perto de casa. Pelas minhas contas, chego em casa às 19h30, me refresco e vou para a sessão de tortura bucal.
Ônibus para o metrô demora mais do que o normal. Lotado. Calor. Suor. A prova de que o aquecimento global é inevitável são as gotas de suor que descem das minhas tetas e costas. I-ne-vi-tá-vel.
Chego no metrô. Muita gente. Minha experiência diz que aconteceu alguma merda. Passa um trem lotado, espero. Passa outro trem lotado, espero de novo. Passa mais um trem lotado, resolvo esperar o próximo. Passa mais um trem lotado e eu entro. As pessoas não sabem se comportar. O cara do meu lado acha que está sozinho e o braço dele fica encostando na minha cabeça. Os seios da menina ao lado estão espremidos para cima e isso tira a atenção do maldito mal educado. Firmes e lisos eles balançam suavemente a cada freada do trem. Mais gente entra e eu perco essa visão.
Terceira notícia do dia: em 2014, SP é o estado que mais deve registrar casos de câncer. 152.200 novos casos serão diagnosticados no estado. Mais de 150 mil pessoas sofrerão com a doença. Quantas pessoas estão aqui neste trem comigo? 0,2% das pessoas que estão neste vagão terão câncer neste ano. Câncer de pele, próstata, mama, cólon, reto, pulmão, estômago, útero. Façam suas apostas. O inferno tem que ser infinito. Despreocupado é o demônio. Penso nesta volta para casa, penso na ida ao dentista, penso na tomografia que vou fazer, penso no câncer de boca que vou ter.
Chego na Sé linha 2-vermelha e está abarrotada. Mais do que o normal. Normal. Como se existisse o normal. Aconteceu uma merda maior ainda. Entro no trem parado achando que ele ia começar a se movimentar logo. Nada. Dez minutos, vinte minutos. Gritaria. Retiro os fones do ouvido e ouço melhor. Uma voz informa que o trem da linha 2-vermelha vai ser evacuado. Não o meu, mas o trem do outro lado. Percebo uma multidão se movimentando, xingando, batendo nos vidros. Trocentas pessoas aglomeradas. O bafo do calor cria uma massa marrom dentro do trem vizinho. Distingo braços levantados, alguns movimentos de mãos se abanando e celulares filmando toda a situação. E eu ainda tenho que ir ao dentista. Saio do meu trem e volto a linha 1-azul e vou para Santana. Passa um trem lotado e eu aguardo o próximo. Passa outro trem lotado e eu entro. Um homem com cabelo de Elvis, camisa de cetim vermelha e sapatos brancos chama minha atenção. Chego em Santana. Sinto a baforada do diabo quando saio do trem. Mal estar. Entro no ônibus lotado e o único lugar vago é atrás de uma menina que está comendo salgadinhos de bacon. Cheiro de bacon no ar. Mal estar. Dez minutos e nada. O ônibus sai do terminal. Devo chegar em 20 minutos em casa. Travo o iPod na música "European Son" do Velvet Underground: “you better say so long, hey hey, bye bye bye”. Pego o meu livro “Black Spring”, do Miller, para ler. Estou na parte de um sonho alucinante misturado com pesadelo. A parte mais surreal do livro. E ele descreve um inverno. O mais frio de todos. E o suor desce pelas minhas dobras. E a última parte do capítulo grita comigo:
“OUT OF BLACK CHAOS WHORLS OF LIGHT WITH PORTHOLES JAMMED. OUT OF THE STATIC NULL AND VOID A CEASELESS EQUILIBRIUM. OUT OF WHALEBONE AND GUNNYSACK THIS MAD THING CALLED SLEEP RUNS LIKE AN EIGHT-DAY CLOCK.”
“FORA DO CAOS NEGRO, ESPIRAIS DE LUZ COM VIGIAS EMPERRADAS. FORA DO VAZIO ESTÁTICO E NULO, UM INCESSANTE EQUILÍBRIO. FORA DAS BARBATANAS DE BALEIA E SACOS DE ANIAGEM ESTA COISA LOUCA CHAMADA SONO FUNCIONA COMO UM RELÓGIO DE OITO DIAS.”
Duas horas e quarenta e dois minutos para chegar em casa. Para ir à tortura bucal. Duas horas e quarenta e dois minutos para o câncer na boca. A doutora não quis me esperar. Perco a consulta. Adio a tortura. Adio o câncer.
Quarta notícia do dia: Após falha, metrô de São Paulo tem quebra-quebra, tumulto e desmaios. Usuários da linha 3-vermelha acionaram botão de pânico e andaram pelos trilhos. Estações são fechadas.
E mais um dia, o bafo do diabo deu a volta ao mundo.
Acordei atrasado como sempre. Hoje resolvi ignorar uma pessoa que vivia em meus pensamentos constantemente. Missão cumprida. Primeira coisa que eu leio: meu horóscopo. Áries. Signo do fogo. Está muito quente. O verbete esotérico dizia para eu reservar tempo e espaço para eu me equilibrar, adiar decisões importantes e cuidar de mim. Difícil, mas não impossível. Dois segundos depois e eu já tinha esquecido da mensagem e me preocupava com o café.
Ônibus cheio, carros entupindo a rua estreita da saída do bairro. Muita gente. Encostado no vidro. Suando. Muito suor. Não fazia nem uma hora que eu estava de pé. Desço do primeiro coletivo. Vou para o terminal. A música nos meus ouvidos não deixou eu ouvir o pedinte me pedindo dinheiro. Deixei falando sozinho. Coitado. Não teve culpa de atravessar o meu caminho. Meu caminho. Como se eu fosse dono de algum caminho.
Entro no prédio e dou graças a algum deus pelo ar condicionado. As vezes acho que é por isso que eu venho trabalhar. Por causa do ar condicionado. Mentira. É pela grana mesmo. Como todos nós. Incrível como o dinheiro nos iguala nos motivos e nos separa por ele mesmo. Aposto que o diabo soltou um risinho de onde quer que ele esteja. Num lugar melhor, suponho.
Primeira notícia do dia: um cientista bem velho e bem renomado diz que o aquecimento global é inevitável e 6 bilhões morrerão. Aposto agora que o diabo se preocupou. Ou não. O inferno deve ser infinito também. A raça humana está condenada. Como se não soubéssemos disso.
Segunda notícia do dia: a estagiária que namora está tendo um caso com o gerente de tecnologia de informação casado com uma grávida com problemas de saúde. A onda de calor turva minha visão e pensamentos e dou um riso antimoralista que ofende as duas meninas que me contaram esta fofoca.
Consigo sair na hora do rush. Dezoito horas. Tenho dentista às 20h30 perto de casa. Pelas minhas contas, chego em casa às 19h30, me refresco e vou para a sessão de tortura bucal.
Ônibus para o metrô demora mais do que o normal. Lotado. Calor. Suor. A prova de que o aquecimento global é inevitável são as gotas de suor que descem das minhas tetas e costas. I-ne-vi-tá-vel.
Chego no metrô. Muita gente. Minha experiência diz que aconteceu alguma merda. Passa um trem lotado, espero. Passa outro trem lotado, espero de novo. Passa mais um trem lotado, resolvo esperar o próximo. Passa mais um trem lotado e eu entro. As pessoas não sabem se comportar. O cara do meu lado acha que está sozinho e o braço dele fica encostando na minha cabeça. Os seios da menina ao lado estão espremidos para cima e isso tira a atenção do maldito mal educado. Firmes e lisos eles balançam suavemente a cada freada do trem. Mais gente entra e eu perco essa visão.
Terceira notícia do dia: em 2014, SP é o estado que mais deve registrar casos de câncer. 152.200 novos casos serão diagnosticados no estado. Mais de 150 mil pessoas sofrerão com a doença. Quantas pessoas estão aqui neste trem comigo? 0,2% das pessoas que estão neste vagão terão câncer neste ano. Câncer de pele, próstata, mama, cólon, reto, pulmão, estômago, útero. Façam suas apostas. O inferno tem que ser infinito. Despreocupado é o demônio. Penso nesta volta para casa, penso na ida ao dentista, penso na tomografia que vou fazer, penso no câncer de boca que vou ter.
Chego na Sé linha 2-vermelha e está abarrotada. Mais do que o normal. Normal. Como se existisse o normal. Aconteceu uma merda maior ainda. Entro no trem parado achando que ele ia começar a se movimentar logo. Nada. Dez minutos, vinte minutos. Gritaria. Retiro os fones do ouvido e ouço melhor. Uma voz informa que o trem da linha 2-vermelha vai ser evacuado. Não o meu, mas o trem do outro lado. Percebo uma multidão se movimentando, xingando, batendo nos vidros. Trocentas pessoas aglomeradas. O bafo do calor cria uma massa marrom dentro do trem vizinho. Distingo braços levantados, alguns movimentos de mãos se abanando e celulares filmando toda a situação. E eu ainda tenho que ir ao dentista. Saio do meu trem e volto a linha 1-azul e vou para Santana. Passa um trem lotado e eu aguardo o próximo. Passa outro trem lotado e eu entro. Um homem com cabelo de Elvis, camisa de cetim vermelha e sapatos brancos chama minha atenção. Chego em Santana. Sinto a baforada do diabo quando saio do trem. Mal estar. Entro no ônibus lotado e o único lugar vago é atrás de uma menina que está comendo salgadinhos de bacon. Cheiro de bacon no ar. Mal estar. Dez minutos e nada. O ônibus sai do terminal. Devo chegar em 20 minutos em casa. Travo o iPod na música "European Son" do Velvet Underground: “you better say so long, hey hey, bye bye bye”. Pego o meu livro “Black Spring”, do Miller, para ler. Estou na parte de um sonho alucinante misturado com pesadelo. A parte mais surreal do livro. E ele descreve um inverno. O mais frio de todos. E o suor desce pelas minhas dobras. E a última parte do capítulo grita comigo:
“OUT OF BLACK CHAOS WHORLS OF LIGHT WITH PORTHOLES JAMMED. OUT OF THE STATIC NULL AND VOID A CEASELESS EQUILIBRIUM. OUT OF WHALEBONE AND GUNNYSACK THIS MAD THING CALLED SLEEP RUNS LIKE AN EIGHT-DAY CLOCK.”
“FORA DO CAOS NEGRO, ESPIRAIS DE LUZ COM VIGIAS EMPERRADAS. FORA DO VAZIO ESTÁTICO E NULO, UM INCESSANTE EQUILÍBRIO. FORA DAS BARBATANAS DE BALEIA E SACOS DE ANIAGEM ESTA COISA LOUCA CHAMADA SONO FUNCIONA COMO UM RELÓGIO DE OITO DIAS.”
Duas horas e quarenta e dois minutos para chegar em casa. Para ir à tortura bucal. Duas horas e quarenta e dois minutos para o câncer na boca. A doutora não quis me esperar. Perco a consulta. Adio a tortura. Adio o câncer.
Quarta notícia do dia: Após falha, metrô de São Paulo tem quebra-quebra, tumulto e desmaios. Usuários da linha 3-vermelha acionaram botão de pânico e andaram pelos trilhos. Estações são fechadas.
E mais um dia, o bafo do diabo deu a volta ao mundo.
27.1.14
Black Star
Não sei como dizer isso, mas vou ser honesto. Algo q eu gostaria de dizer pessoalmente mas é difícil nos encontrarmos. Não sei mais se quer ser ajudado ou se precisa de ajuda. Tentei te ver mas pelo que eu percebi você prefere curtir sua bad vibe do que passar algumas horas comigo e tentar se animar. Gosto muito de você e isso e uma questão minha. E não quero que você vire um problema para mim. Queria que fosse diferente. Sem você querer, sua situação delicada acabou me atingindo também, porque me preocupo com quem eu gosto - já te disse isso também. E sei também que cabe a mim escolher me afastar ou não. Escolhi por enquanto não. Todos somos complicados, mas como disse antes, tem que haver uma abertura, uma força de vontade. Tentei entender o que está acontecendo, tentei ficar por perto mas só notei resistência. Apenas não sei mais. Talvez você precise de mais tempo, não sei. Enquanto espero algumas respostas só sobram as emoções e duvidas para ocuparem nosso tempo. Posso estar enganado e provavelmente estou mesmo - faltam algumas pecas, falta comunicação. Ninguém diz nada até que vem a tona. Me ajuda a te ajudar. Você sabe que eu quero que você fique bem. Conversa comigo, me ajuda a entender. Se abra. Ou não. : ) Se não quiser dividir, não tem problema. Respeito isso porque já passei por isso e é assim que eu me resolvo nessas situações delicadas. Eu me afasto antes de eu afastar quem se preocupa comigo. Porque eu sempre quero que quem gosta de mim volte para perto. Só preciso saber de você.
5.1.14
04h19
Não acredito em certezas e nem no eterno. Acredito que eu quero passar minha vida com você. Agora e não para sempre.
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